Este artigo foi inicialmente publicado no portal Florestas.PT
Revendo o programa “Fronteiras XXI – Quanto Vale a Floresta?” transmitido na RTP em 16 de junho de 2021, deparei-me com um artigo / entrevista muito interessante ao Luis Neves Silva[1], do WWF, que começa com uma reflexão muito pertinente sobre a noção que a sociedade em geral tem da floresta, e que passo a citar:
“Precisamos que as pessoas voltem a apaixonar-se pelo mundo rural e adoptem novos estilos de vida, mas sem preconceitos. Ideias como que a agricultura intensiva é má, que a agricultura orgânica é que é boa, que o eucalipto é mau, que a floresta natural é que é boa. Precisamos de pessoas descomplexadas e dispostas a inventarem uma sociedade da sustentabilidade.”
Ora esta reflexão está na base deste meu artigo de opinião, no qual tentarei abordar a temática de como a “floresta” é percecionada pela sociedade em geral, maioritariamente leiga em termos técnicos mas suficientemente detentora de “verdades” tendencialmente penalizadoras para o setor florestal, e que se difundem nos meios de comunicação social, sobretudo nos períodos estivais posteriores ao trágico ano de 2017, em que os incêndios enchem as capas de jornais e são tema de abertura de noticiários televisivos.
Antes de mais, será relevante esclarecer a utilização do grafismo “floresta” no parágrafo anterior. De facto, o que a maioria da população conhece como “floresta” eu interpreto como território ou paisagem. E esta simples alteração de conceito pode ajudar, e muito, a inverter a atual conotação negativa, e tão desfavorável, que a sociedade tem do que realmente é uma floresta. Senão vejamos: quando irrompemos por essa internet adentro e nos deparamos com as notícias num qualquer motor de busca sobre o termo “floresta”, invariavelmente a grande maioria das notícias são sobre incêndios. E, claro está, como que se de uma verdade “de la Palisse” se tratasse, as florestas de produção (e as de eucalipto em particular) surgem inevitavelmente como a principal causa para tal flagelo. E este é um dos grandes preconceitos que a nossa sociedade já assumiu como certos e que, invariavelmente, é o mote sempre que a floresta é tema de debate.
Na verdade, os incêndios são uma realidade da nossa paisagem e um agente de ação milenar no nosso território, que atua indiscriminadamente no uso e na ocupação do solo. É verdade que os espaços de floresta são grandes acumuladores de vegetação, e consequentemente, de combustível e que, por isso, o risco é maior e a permanência e o efeito dos incêndios nestas áreas é mais sentido. Mas depositar todo o ónus de tamanha catástrofe sobre um setor estrutural para a nossa economia, transmitindo para a sociedade civil o dogma de que “as extensas manchas verdes de floresta de hoje serão os incêndios de amanhã[2]”, é um erro. Esta constatação levou, aliás, a que o termo “incêndios florestais” fosse revisto, e atualmente falamos em “incêndios rurais”, exatamente para evidenciar a sua ocorrência sobre o território rural, mais amplo e complexo do que apenas a floresta. Por outro lado, conotar tão negativamente o setor florestal produtivo e as indústrias de base florestal que lhe estão associadas, responsáveis pela gestão de extensas áreas de floresta segundo padrões de gestão florestal sustentável reconhecidos e validados internacionalmente, é de uma injustiça tremenda. Injustiça sobretudo porque, apesar de a sociedade reconhecer a importância ambiental das florestas, é relutante em admitir que as funções de proteção dos solos e dos recursos hídricos, e de conservação ambiental são igualmente cumpridas em florestas geridas de forma sustentável para o cumprimento de um outro objetivo: o de obtenção de produtos de origem florestal (função designada como de produção).
Para o cumprimento dos objetivos de índole climática e ambiental assumidos pelo Estado Português e pela própria União Europeia, e para a intervenção individual que é exigida a cada um de nós na “emergência climática” que vivemos, um dos grandes desafios dos próximos anos no nosso país está, a meu ver, na capacidade da sociedade reinventar a paisagem. E, porque a floresta ocupa 33% do território, na capacidade de reinventar a maneira como olhamos, conhecemos e utilizamos a nossa floresta. Mas esta ação de reinvenção passará sobretudo pela desmistificação de algumas verdades pré-concebidas e de outros tantos preconceitos, e pelo reconhecimento abrangente do setor florestal como um todo. Um setor capaz de gerar riqueza ambiental, mas também social e, sobretudo, económica e que, como um todo, a poderá cumprir eficazmente todas as funções que adota de forma una e indissociável (proteção, conservação, produção, silvopastorícia, recreio), e responder a todos os desafios que lhe são atribuídos.
E este reconhecimento pela sociedade de que o papel da floresta é muito mais abrangente do que simplesmente a sua função ambiental é tanto mais premente quando a própria Comissão Europeia publica uma Estratégia Europeia para as Florestas[3] que parece negligenciar as múltiplas funções da floresta, doutrinando numa perspetiva unilateral de conservação e de cumprimento exclusivo de objetivos ambientais. A nova estratégia florestal europeia descura a capacidade da floresta poder acolher em simultâneo múltiplos objetivos e funções, sem que estes se contradigam ou inviabilizem. E o facto da Comissão Europeia publicar uma nova estratégia que assenta nesta ideia tão limitada do que deverão ser as florestas em 2030 mostra bem como a sociedade civil em geral pensa a sua floresta e o que pretende para o seu futuro.
Parece-me pois fundamental que a sociedade civil seja cada vez mais bem informada, de forma factual, credível e isenta de preconceitos, recorrendo para tal a fontes de informação cada vez mais credíveis e cientificamente validadas, a estatísticas oficiais e robustas, a dados publicados por entidades reconhecidas. Fontes como o portal www.florestas.pt são um exemplo para uma boa comunicação e informação, capaz de desmistificar alguns preconceitos e esclarecer devidamente a sociedade civil. Mais do que doutrinar, a comunicação social deverá ser o veículo para a criação de massa critica, para a criação de opiniões fundamentadas, para o crescimento de ideias que suportem a reinvenção do nosso território e da nossa floresta. Em última análise, a comunicação de informação descomplexada e abrangente poderia contribuir para que a sociedade civil reagisse de forma crítica e construtiva à publicação da Estratégia Europeia para as Florestas 2030.
Nélia Aires
Eng.ª Florestal – AGRO.GES
1. https://fronteirasxxi.pt/economia-da-floresta/
2. Citação de uma intervenção transmitida na reportagem especial da SIC “Floresta Nossa de Cada Dia” – https://sicnoticias.pt/programas/reportagemespecial/2021-07-04-Floresta-nossa-de-cada-dia-ba9aa36.
3. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52021DC0572.